
Raquel Cataldi
"O cheiro que exalava de mim era horrível, a sensação da roupa molhada e grudada na pele, misturada com sujeita, tinta, comida e grama."
Abri os olhos e levei um tempo para me situar. Eu estava em um quarto diferente do meu em Barbacena. As paredes completamente brancas e vazias por causa da falta de tempo para decoração em meio a mudança do dia anterior. Minha mãe, que ficaria comigo em Juiz de Fora até mais tarde daquele dia, olhou para mim com um sorrisinho de quem ainda tinha esperanças em me fazer mudar de ideia. “Tem certeza que não quer dormir até mais tarde?”, ela disse. De repente, eu estava menos sonolenta por causa do frio na barriga que começou quando eu entendi do que ela estava falando. O dia do trote havia chegado.
Lembro de ter comido cereal com leite e recusado os ovos mexidos que minha mãe insistiu em fazer. Segundo ela, eu precisaria de forças. Era como se eu estivesse indo para a guerra. Depois de alguns minutos, em que eu não me lembro de muita coisa tamanho era meu nervosismo, saí de casa e me dirigi ao Centro de Convivência, local combinado para encontrar meus colegas de turma e seguirmos para a Facom. O dia estava frio e nublado, mesmo já sendo final de setembro. No caminho encontrei a Leticya, minha colega. A reconheci quase imediatamente e seguimos juntas, quase que em silêncio por causa do nervosismo e da falta de intimidade de duas pessoas que acabaram de se conhecer mas que em poucos minutos estariam imundas e mal cheirosas.
Chegamos no Centro de Convivência e aos poucos outros foram se juntando ao grupo de calouros. Fomos para a Facom em bando, confortáveis por sabermos que não estávamos sozinhos nessa. Afinal, sofrer em grupo é menos ruim. Quando entramos no corredor da Facom, os veteranos já estavam a nossa espera e pareciam tão ansiosos quanto nós. No início eles foram simpáticos, guardaram nossos celulares, carteiras e outros pertences. A maioria nós já conhecíamos e já tínhamos interagido através do grupo no Facebook. Então nos entregaram nossas plaquinhas e devo admitir que fiquei impressionada com o capricho na produção delas. Tinham desenhos, colagens, glitter e babadinhos de papel na borda. Na minha se lia “Gêmea Má”, uma referência à personagem Raquel, da novela Mulheres de Areia. A Ruth, minha colega, obviamente foi a Gêmea Boa. Após todos estarem com suas plaquinhas, fomos instruídos a virar para a parede, cantar o hino da Facom e fazer reverência para os veteranos. Após as “solenidades”, fomos encaminhados até o pórtico sul, em uma fila como “elefantinhos”, carregando as tintas e comidas que mais tarde seriam usadas para nos sujar.
Quando finalmente saímos do campus, fomos novamente enfileirados e o trote sujo começou. Uma menina começou a cortar meus shorts com uma tesoura e me assegurou que não cortaria muito. E realmente não cortou. Porém, algumas colegas não tiveram a mesma sorte. Nos pintaram e nos jogaram comida. Na calcinha, ketchup. Depois o rolo compressor. Deitamos no chão em fila, ombro com ombro, e rolamos por cima um do outro. Por mais incrível que pareça, eu achei divertido. Na minha vez de rolar eu perdi um pé do chinelo, que logo depois foi devolvido para mim por algum veterano. Ao final do ritual de sujeira e rolo compressor, nós limpamos o gramado. Para a minha própria surpresa, eu não estava achando aquilo tão ruim quanto eu pensei que seria. Na verdade, a maior parte foi divertida.
Descemos toda a Avenida Itamar Franco, pedindo moedas para quem quer que aparecesse pela frente. Confesso que não me empenhei muito nessa tarefa. Fui até a fachada do Cine Theatro Central a pé e mais uma vez eu estava surpresa por estar achando aquilo legal. O cheiro que exalava de mim era horrível, a sensação da roupa molhada e grudada na pele, misturada com sujeita, tinta, comida e grama. Os pés não doíam pela caminhada e eu me sentia como se pudesse andar o dobro. Ver os outros calouros, de diversos cursos, ocupando o Centro da cidade era de certa forma motivador e empolgante. Sofrer em grupo já não era menos pior. Era divertido.
Minha mãe me encontrou na rua, como eu desconfiava que ela faria, e quase teve um troço. Achou um horror o meu estado e principalmente meu cheiro. Naquela hora eu já estava cansada, então aceitei uma carona para casa. Fui no banco do carro coberto com uma colcha velha para não sujar e com as janelas todas abertas por causa do cheiro. Chegando em casa, fui quase imediatamente para o banho. “Quase”porque antes parei para tirar uma foto da minha situação. Fiquei no banho por uma hora inteira. Lavei o cabelo sete vezes. Quando eu pensava estar limpa achava mais alguma sujeira. A roupa mulambenta foi toda para o lixo. Desliguei o chuveiro, me sequei e coloquei uma roupa limpa e confortável. O cheiro de café com alho ainda estava no meu cabelo e demoraria uns três dias para ir embora completamente. Mas eu havia sobrevivido ao tão temido trote. Melhor: eu gostei. E até hoje o cheiro de café e alho me despertam certa nostalgia.